Durante o ciclo de postagens, no IG do COURB, sobre a informalidade do trabalho em tempos de pandemia, realizamos algumas enquetes sobre o tema com nossos seguidores. Os resultados apontaram uma curiosidade: a maioria das pessoas responderam que não se consideram trabalhadores informais, mas metade afirmou que suas rendas dependem muito de relações informais de trabalho.
Assim, na live que realizamos sobre o assunto, no dia 11/06 (e que você pode assistir na íntegra clicando aqui), buscamos refletir um pouco sobre essa noção comum que temos a respeito do que significa “trabalho informal”. Frequentemente associamos tal condição à figura do vendedor ambulante, do camelô, da pessoa que vive de “bicos” e etc. Ou seja, de quem está literalmente à margem da inserção no mercado de trabalho entendido como formal.
Embora seja, de fato, uma realidade inegável no Brasil, será que esse entendimento esgota a condição informal na atualidade? Especialmente em tempos onde muitas das relações de trabalho “tradicionais” estão comprometidas pela flexibilização e retirada de direitos trabalhistas, argumentamos que é possível e necessário ampliar nossa compreensão sobre o que é informalidade e como, talvez, nós mesmos estejamos inseridos nesta dinâmica. Confira:
O PRECARIADO COMO O “NOVO” INFORMAL
O conceito do precariado (que combina as noções de “proletário” e “precariedade”) nos ajuda nessa jornada. Para o economista inglês Guy Standing – responsável pela popularização do termo – o precariado surgiu na crise do keynesianismo-fordismo dos anos 1970. Um dos efeitos dessa crise foi a ruptura das políticas de bem-estar social do pós 2ª guerra, que haviam consolidado direitos e garantias aos trabalhadores assalariados, em detrimento da flexibilização e consequente precarização das relações de trabalho. Para Standing, é neste clima de instabilidade que o precariado emerge como uma nova classe social, composta por trabalhadores ainda assalariados (proletários), mas precarizados, com cada vez menos direitos e garantias, à margem de políticas públicas.
Entretanto, a visão acima é altamente influenciada pelas experiências de Social-Democracia na Europa pós-guerra. Portanto, não representam em totalidade as consequências desse processo histórico em outras realidades, como na América Latina e no Brasil. Em função disso, os trabalhos de Standing tem recebido diversas críticas, bem como o conceito de precariado vem sendo apropriado e ressignificado por outros atores.
No Brasil, essa ressignificação tem sido elaborada por intelectuais como Ruy Braga (USP) e Giovanni Alves (UNESP). Braga argumenta que a visão de Standing abandona o horizonte da crítica do capitalismo como modo de produção. Assim, não seria adequado falar no surgimento de uma “nova classe social”, porque, na verdade, o precariado é uma camada da classe social do proletariado, que na prática nunca deixou de existir. Afinal de contas, a consolidação de direitos trabalhistas pode conferir seguridade ao trabalhador, mas não supera a dependência de salário.
Já para Giovanni Alves, além do precariado ser, de fato, uma camada social inserida na classe do proletariado, também é um grupo que possui características sociológicas que o distingue do restante da sociedade. Para Alves, o trabalhador precariado é urbano, jovem e muitas vezes possui até formação superior. No entanto, sua inserção no mercado de trabalho é cada vez mais precária. Isso se dá em função do que já comentamos: flexibilização das relações de trabalho e constante retirada de direitos que acarretam em vínculos empregatícios sem registro e, portanto, sem benefícios, férias, proteção social e etc.
Ou seja, a partir da figura do trabalhador precariado, podemos pensar em relações de trabalho historicamente consideradas “tradicionais” ou “formais”, mas que, na prática, estão cada vez mais próximas do campo da informalidade. Porém, uma pergunta permanece: por que ainda há dificuldade em nos reconhecermos informais, se muitas vezes parte de nossa renda provém deste tipo de relação de trabalho? Temos um palpite:
PRECARIADO: UM PROLETÁRIO COM VALORES URBANOS?
Ainda de acordo com Giovanni Alves, se o precariado representa, em partes, uma camada da classe trabalhadora que é jovem e escolarizada, então podemos concluir que se trata de uma parcela da população que cultua valores éticos e morais típicos de uma classe média urbana – e que aspira viver como tal. Isto é: o precariado estuda, cultiva “bons hábitos”, frequenta “bons lugares”, quer se casar e constituir família, financiar seu imóvel e carro próprios, viajar para o exterior à base de muitas prestações e por aí vai. Não há nada de errado nisso!
No entanto, ao se deparar com a realidade do mercado, o trabalhador precariado percebe que está preso a uma lógica cada vez mais flexível e sem garantias. Aquele trabalho que deveria ser temporário se transforma no ganha-pão fixo, e o freelancer deixa de ser fonte de renda extra para virar carreira.
E no fim das contas, o trabalhador precariado se encontra cada vez mais distante do estilo de vida desejado. Suas relações de trabalho o levam a encarar uma discrepância entre o “modo como quero viver” e o “modo como consigo viver”. Contudo, esse é o resultado de uma construção social de imaginário urbano por uma camada social que é – ou aspira ser – de classe média. E isso gera efeitos dramáticos na maneira como habitam e produzem a cidade – mas isso é assunto para outro post! 🙂