Segregação Racial nos Estados Unidos e o papel das Políticas Públicas

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“Nós queremos inquilinos brancos em nossa comunidade branca”. Foto de Arthur Siegel, em Detroit, Michigan.
Disponível em: Library of Congress

A segregação espacial é um dos grandes problemas urbanos no mundo. Ela se caracteriza pela separação de classes sociais em diferentes regiões das cidades. Esse processo, ao longo do tempo, acaba contribuindo para o aprofundamento dessas diferenças. Nos Estados Unidos após a crise de 1929, o governo federal criou uma metodologia para orientar empréstimos financeiros, visando possibilitar a quitação de imóveis para as populações endividadas. A metodologia se dedicou a classificar as regiões da cidade de acordo com seus aspectos sociais, e acabou por enfatizar e aprofundar uma urbe fragmentada, encorajando o preconceito e a intolerância. A segregação como política pública, acabou por limitar as oportunidades de muitas populações por gerações, resultando em uma distribuição social que ainda hoje, quase 100 anos depois, é evidente na maioria das cidades norte americanas.

Classificação dos bairros de Los Angeles

Classificação dos bairros de Los Angeles.
Fonte:
Mapping Inequality¹

Nos anos 30, em meio à Grande Depressão que assolava os EUA, um programa do governo federal chamado Home Owners’ Loan Corporation (HOLC) foi estabelecido. Ele era parte do grande engenho anti-cíclico do Presidente Roosevelt, o New Deal. A tarefa era relativamente complexa: o HOLC deveria mapear os riscos provenientes de empréstimos nos bairros de diferentes cidades do país, para que os bancos pudessem determinar para onde iria o dinheiro que refinanciaria os empréstimos para compra de casas para população que estava completamente quebrada depois da crise.

Para isso ser feito, o HOLC fazia parcerias com corretores e agências imobiliárias locais, que tinham maior permeabilidade nas cidades, e poderiam ajudar nesse processo de mapeamento. Estes, na maioria dos casos, julgavam os bairros baseados nos seus perfis raciais e nas condições econômicas das populações. O mapeamento, ao invés de ser um mapeamento de risco, acabou se tornando um mapeamento da pobreza. Os bairros mais pobres, com mais minorias étnicas e populações estrangeiras eram avaliados com as piores notas, e pintados de vermelho. Daí a origem do vermelho ser relacionado a notas baixas.

As metodologias de segregação urbana

As fichas de descrição de cada bairro apresentavam, além de dados populacionais, detalhes sobre o zoneamento e sobre os imóveis de cada região, e sobre o status financeiro de cada propriedade (alugadas, a venda, se possuem dívidas, etc). A classificação dos mapas era feita em sua maioria devido aos aspectos sociais (renda média, distribuição étnica, população estrangeira) da seguinte forma: A) Ótimo (verde); B) Desejável (azul); C) Em decadência (amarelo); D) Perigoso (vermelho).

Acontece que os bairros mais pobres e com mais minorias étnicas não necessariamente estavam ligados a maiores taxas de inadimplência. O que aconteceu, foi que as pessoas que se endividaram durante a Grande Depressão, se morassem em regiões vermelhas, dificilmente conseguiriam apoio para se restabelecer financeiramente. As baixas notas dificultaram muito a vida dessas populações mais pobres, marginalizando-as ainda mais, e dificultando muito o seu acesso à casa própria. O mapeamento aprofundou a desigualdade.

Os típicos empréstimos eram amortizados em 15 anos. O que era extremamente atrativo, já que os empréstimos de bancos privados eram de 3-6 anos. As taxas de juros também eram atrativas. Enquanto o mercado oferecia juros de cerca de 8%, o HOLC oferecia juros de 4,5% ao ano. Entre 1933 e 1935, o HOLC fez mais de um milhão de empréstimos. Em geral, os empréstimos eram feitos para pessoas que estavam devendo por mais de dois anos. Cerca de 20% dos empréstimos nunca foram pagos.

Os legados da desigualdade

Basta acessarmos os documentos para entendermos do que se trata. Em algumas regiões, os bairros são descritos como: “próximo a área de negros”, ou então “infiltração de elementos raciais subversivos”. Essa mentalidade fragmentadora, fundamentada na segregação sócio-espacial e na segregação econômica, gera preconceito e intolerância, está até hoje enraizada no planejamento urbano das cidades americanas. As cidades são divididas em pequenos clusters, divididos por muros invisíveis. Essa fragmentação sócio econômica se desdobra em diversos aspectos, e se reflete espacialmente através: da priorização no financiamento das escolas públicas, de escolhas na melhoria da infraestrutura, das políticas de segurança pública, da qualidade alimentar e poluição, da geração de empregos. Tudo. Sociedade desigual, cidade excludente.

Esse legado de discriminação ainda é sentido hoje em dia. Alguns bairros como South Central LA, hoje em dia possuem taxa de criminalidade é extremamente alta e as populações parecem estar abandonadas pelo estado. a Little Armenia, também em Los Angeles, era considerado em decadência nos anos 30, mas melhorou com políticas públicas de incentivo à infraestrutura, ao turismo, e a programação cultural. Em New York, Fort Greene é majoritariamente habitado por uma classe trabalhadora negra, no Brooklyn. Mas como tudo que está a um raio de 8 quilômetros de Manhattan, a área se transformou, e grande parte das populações marginalizadas pela discriminação histórica, já estão longe. Perto do JFK, no norte do Bronx, ou quilômetros para dentro de New Jersey.

Ficha de Registro de Wachita

“Ficha de Registro de Wachita, Kansas, descrevendo um bairro como D)
Fonte: Mapping Inequality¹

O mais angustiante é observar que apesar do fato de que alguns bairros evoluíram, no que diz respeito à forma como eles são vistos por investidores imobiliários (principalmente devido à escassez de terras urbanas), as populações que lá estavam, continuam sendo alvo de preconceito, e segregação. Nas grandes cidades dos EUA, existem bairros inteiros dedicados a populações chinesa, coreana, japonesa, italiana, armênia, russa, polonesa, mexicana, peruana, colombiana. A segregação é ainda mais evidente quando se trata da população negra.

Desigualdade racial e espacial estão diretamente associadas com acesso aos principais serviços associados a uma alta qualidade de vida (saúde, educação, emprego, etc). A segregação racial e a concentração da pobreza, tendem a concentrar de um lado os problemas urbanos, e de outro, os privilégios. Esses efeitos perduram por gerações. Pesquisas já mostram relações entre pobreza e gravidez na adolescência, mortalidade infantil, qualidade escolar, expectativa de vida. Acesso à água limpa, exposição a tintas à base de chumbo, altas taxas de stress e obesidade, isolamento social. Tudo afetado pelo local onde as pessoas nascem, vivem e trabalham.

Alguns insistem em argumentar que os indivíduos escolhem seus caminhos livremente, baseados em suas capacidades financeiras. Mas muitos pesquisadores já demonstraram o papel de políticas públicas e práticas institucionalizadas (como políticas fiscais, de transporte e de zoneamento) que servem como barreiras para a escolha do indivíduo em relação a onde morar. Elas contribuem com a desigualdade espacial.

Talvez se o “mapeamento de riscos” tivesse realmente considerado inadimplência ou se tivesse ao menos considerado o apoio à populações marginalizadas, para que elas pudessem ter acesso às necessidades humanas básicas, as metrópoles norte-americanas hoje estivessem vivendo um patamar mais digno de harmonia social, ao invés da consolidação da segregação e da formação das bolhas suburbanas que duraram 50 anos, e da bolha da gentrificação do século XXI. Vai saber…

1 Robert K. Nelson, LaDale Winling, Richard Marciano, Nathan Connolly, et al., “Mapping Inequality,” American Panorama, ed. Robert K. Nelson and Edward L. Ayers, accessed February 9, 2017, https://dsl.richmond.edu/panorama/redlining/#loc=10/34.0050/-118.1565&opacity=0.8&city=los-angeles-ca&text=bibliograph.
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